Folhetim por Licínia Quitério
Casa de Hóspedes (26º. e último episódio)
Adelaide acordou tarde. Desde que rompeu com o Gil, e porque tinha dificuldade em dormir, o médico receitou-lhe uns comprimidos para tomar à noite e passou a ter longos sonos, longos demais, dizia ela, que se levantava tarde para tanta lida, só para tratar da sogra, agora totalmente dependente, eram horas de esforço e paciência. Nem ligou o rádio, pegou na alcofa das compras e quando ia a descer a escada encontrou a D. Laura e a D. Balbina na conversa, acompanhadas pelo latir furioso do cão do primeiro direito, onde é que vai, Adelaide, admirada com a pergunta, às compras, onde é que havia de ser, ó menina, não vá, há uma revolução, estão a brincar comigo, uma revolução, deitaram abaixo o Governo, disse o meu homem, ele até disse que caíram os fascistas, e saiu feito um maluco, anda lá pela Baixa, e eu aqui ralada que eles avisam para ninguém sair de casa. Pousou a alcofa, encostou-se à parede e ali ficou na conversa, uma conversa nova, com palavras novas, de susto, de interrogação, elas eram todas mulheres e por isso nada sabiam de política, a política nem para os homens era boa, a política delas era o trabalho, mas o que é que estaria mesmo a acontecer lá fora, isto com militares pode ser uma desgraça, será que vai ser uma mudança boa para as nossas vidas, será que a guerra vai acabar, sei lá, quem me dera que chegue alguém e nos explique, em casa da Dona Júlia só ficou a D. Adélia, os rapazes e a rapariga saíram quase de madrugada, gente nova, com o sangue na guelra, o olhar enviesado para a Adelaide, ela a corar sem querer, até o senhor mais velho se foi embora com malas e tudo, sei lá porquê, foi a Dona Júlia que disse que ele até parecia que ia a fugir, mau, isto é mais complicado do que a gente imagina, e agora não temos governo, e depois, perde-se alguma coisa, ó senhora, isto é a gente a falar. Depressa divergiram para a carestia da vida, para os homens mulherengos, uma praga, e a D. Balbina, se nós fizéssemos como eles, hoje um amanhã outro, havia de ser bonito, e a Adelaide a pensar, isto é comigo, mas eu faço que não entendo, cada um sabe de si e Deus sabe de todos, então até logo, sendo assim não vou às compras, remedeio-me com o que tenho em casa.
O Albertino não veio abrir a loja, foi cá um prejuízo, e deve ser por isso que nunca mais gostou de ouvir falar no dia vinte cinco de Abril.
Já era noite fechada quando Lucrécia apareceu. Trazia ao peito um cravo vermelho e assim ainda ficava mais bonita a miúda, na sua reviravolta a dizer, eles caíram, Dona Júlia, os estupores caíram.
Dona Júlia desabou em lágrimas, sem saber bem o porquê daquela alegria que lhe aqueceu todo o peito, toda a casa de hóspedes, sua outra casa sendo a mesma, que nada volta a ser o que era, só as lembranças não se apagam e ainda bem porque foi com elas que reconstruiu a casa, que se reconstruiu.
FIM
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